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quarta-feira, 26 de abril de 2017

Café Com Conhecimento - Entrevista com Dr. Paulo Fleury sobre o uso medicinal da Cannabis


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Paulo Fleury Teixeira
Médico de família, especialista em Canabis Medicinal.

O Santa de Casa Faz Milagre teve uma conversa rápida com o Dr. Paulo Fleury sobre o uso dos canabinoides para o tratamento do autismo e da epilepsia, e ele nos agraciou inteligentemente com a sua trajetória de pesquisas e conhecimento sobre o assunto. Espero que gostem deste momento do Café Com Conhecimento tanto quanto nós:
"O que me motivou a buscar esses tratamentos medicinais com canabidiol foi, em primeiro lugar, o tratamento da epilepsia. Pessoalmente, ou em estudos com outros colegas, pude ver resultados muito bons no tratamento da epilepsia, principalmente em crianças, com óleo de Cannabis, tanto no controle de crises convulsivas quanto no desenvolvimento global. Algo inesperado inicialmente, foram as mudanças de tendência no desenvolvimento global, o que já despertava interesse para um eventual tratamento dos déficits de desenvolvimento global.
No Brasil, os profissionais da saúde e os pais tiveram acesso ao Canabidiol através dos estudos sobre a Epilepsia, que recebeu um impacto midiático no que diz respeito ao tratamento das epilepsias refratárias através do óleo de Canabis, e então gerou abertura quanto à institucionalidade (ANVISA): adequação das regras sobre os óleos ricos em CBD e THC.
CBD e THC são os dois componentes ativos mais presentes na planta quando ela sofre um processo de ativação pelo calor (descarboxilação). A partir deste processo ela fica com uma concentração alta de CBD e THC - componentes que têm maior atividade no nosso organismo. O THC é, seguramente, o mais psicoativo e em geral, o mais ativo, e o CBD é menos psicoativo, diferentemente do que algumas pessoas pensam, podendo ter efeitos que induzem à sonolência ou adversidades quando associados a medicamentos psicoativos. Nas plantas comuns, o índice de THC é mais alto do que o de CBD. As plantas com CBD mais alto são raras e utilizadas para fabricação desses óleos que são importados para o Brasil. Os óleos artesanais produzidos e vendidos sem autorização da Anvisa provavelmente contêm teor de THC mais alto, portanto é preciso estar atento.
Uma segunda fonte de informação muito importante para chegar a esta perspectiva, foi entrar em contato com Renato Malcher que é um parceiro intelectual, biólogo, que estuda o canabidiol e seus efeitos no sistema nervoso. Quando do seu estudo,  ele veio a ter um filho autista, passando a se interessar redobradamente pelas terapias dos canabinoides,  e vindo a construir um conjunto de teorias e hipóteses sobre as quais se poderia tratar o autismo com óleo de Cannabis. Ele já havia tentado isso de uma forma instável com óleos artesanais, tendo efeitos positivos, e numa palestra em Brasília, falou sobre teorias que confirmaram os meus pensamentos e estudos sobre o canabidiol. Além de outras fontes que me levavam a esta hipótese, a teoria simplesmente descrita, que me parece muito razoável e consistente, é de que haja uma super excitabilidade neuronal que se associaria a praticamente todos os sinais e sintomas do autismo - ou pelo menos a um grande conjunto deles - e distúrbios associados, como os distúrbios do sono, característico de muitos autistas. Hiperatividade neuronal esta, que me pareceu muito razoável ser tratada com óleo de cannabis que ajuda no tratamento de muitas crianças epilépticas no Brasil (doença que se apresenta em muitas crianças no espectro e que, como mostram diversos estudos, tem relações com o autismo). Hoje, um número que parece seguro e que aparece com muita frequência é de que temos altos níveis de controle das convulsões que é em torno de 30% de eliminação de crianças epilépticas refratários, e no restante há uma melhora escalonada, e pareceu extensível este tratamento em relação ao distúrbio do sono em autistas, na hiperatividade e nos déficits de atenção.
Meu primeiro caso de uma criança autista fazendo tratamento com óleo por um período de 2 anos tinha como principal característica o distúrbio do sono intenso levando a um número de despertares muito grande, próximo de 12 a 20 por noite.  Isso tornava a vida da família muito angustiante, e a mãe, especialmente, estava muito sobrecarregada com esta condição. Após o início do tratamento teve uma melhora progressiva excelente, no que diz respeito ao distúrbio. Hoje, com o uso do Óleo, ela tem, em média, um despertar por noite, e a polissonografia indica uma melhora surpreendentemente positiva: no início, o número era de 129 episódios repetitivos de braços e pernas, de quase despertares ou despertares completos, provocados pela inquietude por atividade epileptiforme e o último exame de polissonografia resultou em um número de 0 atividade epileptiforme ou de movimento repetitivo, apresentando também grandes melhoras nas atividades do desenvolvimento global. Além de desenvolvimento consideravelmente bom no da fala.
A trajetória que me levou ao estudo do canabidiol com grande interesse também se baseia em um conjunto de evidências empíricas importantes como de um grupo de amigos que tem um relato de caso histórico muito próximo e me pareceu importante considerar; são pessoas diagnosticadas como hiperativas e que tiveram um caminho difícil na sua infância e adolescência, com medicamentos, e também na sua trajetória escolar e encontraram no uso constante de maconha fumada um equilíbrio que não tiveram com outros medicamentos, o que agrega o meu estudo por me parecer importante. Atravessando outros pontos, por algumas décadas também aparecem relatos de casos de mães na internet que começaram a tratar o seu filho com cookies ou brownies que foram feitos com manteiga de maconha, por exemplo. Essas mães obtiveram controle em aspectos dramáticos do autismo como as crises de agressividade. E ao falar maconha ou Cannabis, falo de plantas com THC em alto teor e não as que são voltadas para produzir CBD. Então esse foi o caminho que usei pois estava convencido e atravessar estes estudos com crianças epilépticas e os resultados apresentados por elas.
Hoje buscamos orientar pais de crianças autistas com a possibilidade de um tratamento para esses aspectos centrais com o óleo de cannabis que possui vantagens sobre os tratamentos tradicionais, especialmente os medicamentosos, disponíveis para o autismo. Um grupo de pacientes de Belém do Pará se interessou no tratamento e conseguimos a doação de uma empresa norte-americana através de uma associação de pacientes e interessados em cannabis medicinal aqui na região de Minas Gerais, A AMA+ME, para fazer um tratamento experimental de 9 meses, pois o acesso é muito dificultado, principalmente no que diz respeito à legislação brasileira (não estou tendo dificuldade relativamente significativa no estudo com os meus pacientes, apesar de ser preciso acionar o Estado e a Anvisa para conseguir  o uso do óleo no Brasil). Os pacientes que estavam no estudo receberam doação da empresa de Colorado, durante o tratamento, o que possibilitou a continuidade, já que o custo é alto (o tratamento de uma criança com aproximadamente 30 kg sai por cerca de R$ 2.000 por mês) e por isso um grupo de pais passou a buscar outras alternativas, como o uso dos óleos artesanais.
Eu iniciei esse grupo de tratamento para o autismo com 18 pacientes sendo que 15 estavam iniciando o tratamento e 3 já estavam sendo acompanhados por mim, sendo que 2 já descrevi e o terceiro é filho de um colega médico aqui em Belo Horizonte: uma criança epiléptica grave com alto risco de morte por causa da frequência das crises convulsivas e, no entanto, desde que começou a usar o óleo teve uma evolução boa e hoje já não usa outros convulsivantes. No terceiro ano do uso do óleo ele desenvolveu visivelmente os seus aspectos gerais, lembrando que ele é uma criança com limitações importantes, pois sofreu crises convulsivas generalizadas com grande frequência durante a vida, então tem lesões neurológicas permanentes, e mesmo assim, dentro de suas limitações, obteve grandes melhoras. Os outros 15 pacientes do grupo têm características comuns do TEA, sendo um conjunto de crianças epilépticas, outro de autistas de alta performance, outros com crises de auto-agressividade e hiperatividade, dentre outros. Acredito ser um leque bastante importante e com esses 18 pacientes tive uma representatividade significativa no que diz respeito à pesquisa do Canabidiol. Esta é uma amostra que pode não ser considerada expressiva, de um modo geral, mas indicativa, das condições gerais que se encontra nos diagnósticos das crianças
No início do tratamento tivemos três desistências por causa do uso de medicamentos tradicionais que foram retirados durante o tratamento, ex: rebote por retirada abrupta e outros efeitos. Hoje tenho visto muitos pacientes neurológicos com síndromes epilépticas graves que diante da falência com outros medicamentos têm iniciado o tratamento com óleos de cannabis e o próximo passo foi reduzir a dosagem dos outros medicamentos e aumentar o nível de óleos, o que diminuiu a frequência das crises epiléticas, e a partir desta atitude, hoje, estamos conseguindo fazer uma introdução mais segura dos óleos que é concomitante à retirada dos medicamentos.
O desenvolvimento da criança no TEA que está em tratamento com o canabidiol é visto no estudo com grandes melhoras na área da comunicação, no controle dos distúrbios do sono, diminuição de crises epilépticas, recognição social, dentre outras áreas de dificuldade no processo de desenvolvimento.
Eu percebo que devido ao pouco tempo das pesquisas sobre os efeitos do canabidiol, não temos relatos sobre o seu uso prologado.Mas espero, para crianças epilépticas refratárias, que continuem o tratamento até que haja um avanço no conhecimento que seja superior a esta terapêutica, o mesmo eu penso para crianças com distúrbio do sono grave, bem como com crises de auto agressividade e em todos os extremos do autismo. Nesses casos eu não consigo visualizar questões de dependência do uso contínuo. Já que as pesquisas são muito novas não temos certeza dos efeitos de dependência. Já no que diz respeito à interrupção do óleo, tive um paciente que não era agressivo e que teve grande melhora no desempenho cognitivo e funcional, mas interrompeu o tratamento devido à seletividade alimentar que estava causando emagrecimento, e tendo interrompido não teve regresso nos ganhos (este é o único caso em que observamos este resultado), diferentemente de quando aconteceu interrupção em casos de crianças com relatos de agressividade em que após esta interrupção as crises voltaram.
Me parece razoável que não haja dependência no uso do Óleo de CBD. As dificuldades são com as interrupções ocasionais ou não. Quando se fala de dependência as pessoas estão falando em cannabis em geral ou THC. E tenho experiência com pacientes utilizando óleo rico em THC ou cannabis integral e não vejo dependência importante. No grupo de 18 crianças que posteriormente foi reduzida a 15, vejo dificuldades na interrupção, pois as crises voltam, diferentemente das drogas tradicionais que causam dependência e efeito rebote. O processo de tratamentos tradicionais é muito limitado diante das dificuldades das crianças e eu tenho a segurança que do ponto de vista orgânico não existe associação entre o uso de canabinóides crônico e qualquer problema de saúde, diferentemente dos tratamentos tradicionais como o uso da Risperidona, associado à obesidade, parkinsonismo e hipercolesterolemia. Acredito que os tratamentos alternativos podem diminuir ou eliminar todos os antipsicóticos e anticonvulsivantes e conseguir bons resultados, portanto é uma grande vantagem já que este é um fitoterápico seguramente comprovado.
Está havendo uma expansão do uso de óleos artesanais no país, pois muitos cultivadores estão plantando e mudando sua forma de cultivo - e podem e devem fazer isso - pois há demanda para fazer o óleo com igual qualidade ao dos Estados Unidos e mais barato. Nós temos um relato histórico de uso de Cannabis - que tem teores de THC maiores – em que talvez haja surpresas negativas (e eu espero que não), pois os efeitos dos canabinoides pelo menos até onde eu posso dizer relativamente são inócuos comparando-se aos outros remédios tradicionais. Não queremos desfavorecer o THC, muito pelo contrário, pois tenho pacientes com evoluções surpreendentes com o uso de óleos artesanais com grande índice de THC e que tiveram controle excelente de crises. Os óleos artesanais têm problemas no que diz respeito à continuidade por causa da diversidade e da qualidade das plantas, o que pode influenciar no tratamento.
Na minha visão não há restrições importantes para crianças epilépticas, autistas ou autistas epilépticos. Se tratando de epilepsia refratária a necessidade é que comece o tratamento o mais cedo possível, pois dos tratamentos existentes é o menos agressivo, então seguramente é uma opção de tratamento com início precoce. Nos casos de autismo sem epilepsia, se o responsável está considerando o uso de antipsicóticos eu sugiro que inicie com o óleo, pois ele atua sobre o conjunto mais amplo dos sinais e sintomas, diferentemente das drogas tradicionais. Uma possível restrição é o uso de uma ou mais medicações psiquiátricas associadas ao óleo rico em CBD ou em THC. Pode ser utilizado com entrada mais suave do canabidiol e retirada lenta e programada dos antipsicóticos e até anticonvulsivantes, apesar de último ter boa associabilidade ao tratamento com canabidiol.

É importante ressaltar que não estamos falando em cura, mas em melhorar o desenvolvimento global da criança autista, trabalhando no controle dos aspectos mais graves e a alteração da curva do desenvolvimento para cima, abrindo portas de oportunidade para desenvolvimento futuro.

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