Paulo Fleury Teixeira
Médico de família, especialista em Canabis Medicinal.
Médico de família, especialista em Canabis Medicinal.
O Santa de Casa Faz Milagre teve uma conversa rápida com o
Dr. Paulo Fleury sobre o uso dos canabinoides para o tratamento do autismo e da
epilepsia, e ele nos agraciou inteligentemente com a sua trajetória de
pesquisas e conhecimento sobre o assunto. Espero que gostem deste momento do
Café Com Conhecimento tanto quanto nós:
"O que me motivou a buscar esses
tratamentos medicinais com canabidiol foi, em primeiro lugar, o tratamento da
epilepsia. Pessoalmente, ou em estudos com outros colegas, pude ver
resultados muito bons no tratamento da epilepsia, principalmente em crianças,
com óleo de Cannabis, tanto no controle de crises convulsivas quanto no
desenvolvimento global. Algo inesperado inicialmente, foram as mudanças de
tendência no desenvolvimento global, o que já despertava interesse para um
eventual tratamento dos déficits de desenvolvimento global.
No Brasil, os profissionais da saúde e os pais tiveram
acesso ao Canabidiol através dos estudos sobre a Epilepsia, que recebeu um
impacto midiático no que diz respeito ao tratamento das epilepsias refratárias
através do óleo de Canabis, e então gerou abertura quanto à institucionalidade
(ANVISA): adequação das regras sobre os óleos ricos em CBD e THC.
CBD e THC são os dois componentes
ativos mais presentes na planta quando ela sofre um processo de ativação pelo
calor (descarboxilação). A partir deste processo ela fica com uma concentração
alta de CBD e THC - componentes que têm maior atividade no nosso organismo. O
THC é, seguramente, o mais psicoativo e em geral, o mais ativo, e o CBD é menos
psicoativo, diferentemente do que algumas pessoas pensam, podendo ter efeitos
que induzem à sonolência ou adversidades quando associados a medicamentos
psicoativos. Nas plantas comuns, o índice de THC é mais alto do que o de CBD. As plantas com CBD mais alto são raras e utilizadas para fabricação desses
óleos que são importados para o Brasil. Os óleos artesanais produzidos e
vendidos sem autorização da Anvisa provavelmente contêm teor de THC mais alto,
portanto é preciso estar atento.
Uma segunda fonte de informação
muito importante para chegar a esta perspectiva, foi entrar em contato com
Renato Malcher que é um parceiro intelectual, biólogo, que estuda o canabidiol
e seus efeitos no sistema nervoso. Quando do seu estudo, ele veio a ter um filho
autista, passando a se interessar redobradamente pelas terapias dos canabinoides, e vindo a construir um conjunto de teorias e hipóteses sobre as quais se poderia
tratar o autismo com óleo de Cannabis. Ele já havia tentado isso de uma forma instável
com óleos artesanais, tendo efeitos positivos, e numa palestra em Brasília,
falou sobre teorias que confirmaram os meus pensamentos e estudos sobre o
canabidiol. Além de outras fontes que me levavam a esta hipótese, a teoria
simplesmente descrita, que me parece muito razoável e consistente, é de que haja
uma super excitabilidade neuronal que se associaria a praticamente todos os sinais
e sintomas do autismo - ou pelo menos a um grande conjunto deles - e distúrbios
associados, como os distúrbios do sono, característico de muitos autistas. Hiperatividade
neuronal esta, que me pareceu muito razoável ser tratada com óleo de cannabis
que ajuda no tratamento de muitas crianças epilépticas no Brasil (doença que se
apresenta em muitas crianças no espectro e que, como mostram diversos estudos,
tem relações com o autismo). Hoje, um número que parece seguro e que aparece
com muita frequência é de que temos altos níveis de controle das convulsões que
é em torno de 30% de eliminação de crianças epilépticas refratários, e no
restante há uma melhora escalonada, e pareceu extensível este tratamento em
relação ao distúrbio do sono em autistas, na hiperatividade e nos déficits de
atenção.
Meu primeiro caso de uma criança
autista fazendo tratamento com óleo por um período de 2 anos tinha como
principal característica o distúrbio do sono intenso levando a um número de
despertares muito grande, próximo de 12 a 20 por noite. Isso tornava a vida da
família muito angustiante, e a mãe, especialmente, estava muito sobrecarregada
com esta condição. Após o início do tratamento teve uma melhora progressiva
excelente, no que diz respeito ao distúrbio. Hoje, com o uso do Óleo, ela tem,
em média, um despertar por noite, e a polissonografia indica uma melhora
surpreendentemente positiva: no início, o número era de 129 episódios
repetitivos de braços e pernas, de quase despertares ou despertares completos,
provocados pela inquietude por atividade epileptiforme e o último exame de
polissonografia resultou em um número de 0 atividade epileptiforme ou de
movimento repetitivo, apresentando também grandes melhoras nas atividades do
desenvolvimento global. Além de desenvolvimento consideravelmente bom no da
fala.
A trajetória que me levou ao estudo
do canabidiol com grande interesse também se baseia em um conjunto de
evidências empíricas importantes como de um grupo de amigos que tem um relato
de caso histórico muito próximo e me pareceu importante considerar; são pessoas
diagnosticadas como hiperativas e que tiveram um caminho difícil na sua
infância e adolescência, com medicamentos, e também na sua trajetória escolar e
encontraram no uso constante de maconha fumada um equilíbrio que não tiveram
com outros medicamentos, o que agrega o meu estudo por me parecer importante.
Atravessando outros pontos, por algumas décadas também aparecem relatos de casos
de mães na internet que começaram a tratar o seu filho com cookies ou brownies
que foram feitos com manteiga de maconha, por exemplo. Essas mães obtiveram
controle em aspectos dramáticos do autismo como as crises de agressividade. E
ao falar maconha ou Cannabis, falo de plantas com THC em alto teor e não as que
são voltadas para produzir CBD. Então esse foi o caminho que usei pois estava
convencido e atravessar estes estudos com crianças epilépticas e os resultados
apresentados por elas.
Hoje buscamos orientar pais de
crianças autistas com a possibilidade de um tratamento para esses aspectos
centrais com o óleo de cannabis que possui vantagens sobre os tratamentos
tradicionais, especialmente os medicamentosos, disponíveis para o autismo. Um
grupo de pacientes de Belém do Pará se interessou no tratamento e conseguimos a
doação de uma empresa norte-americana através de uma associação de pacientes e
interessados em cannabis medicinal aqui na região de Minas Gerais, A AMA+ME,
para fazer um tratamento experimental de 9 meses, pois o acesso é muito
dificultado, principalmente no que diz respeito à legislação brasileira (não
estou tendo dificuldade relativamente significativa no estudo com os meus
pacientes, apesar de ser preciso acionar o Estado e a Anvisa para conseguir o
uso do óleo no Brasil). Os pacientes que estavam no estudo receberam doação da empresa de Colorado, durante o tratamento, o que possibilitou a continuidade, já que o
custo é alto (o tratamento de uma criança com aproximadamente 30 kg sai por
cerca de R$ 2.000 por mês) e por isso um grupo de pais passou a buscar outras alternativas,
como o uso dos óleos artesanais.
Eu iniciei esse grupo de tratamento
para o autismo com 18 pacientes sendo que 15 estavam iniciando o tratamento e
3 já estavam sendo acompanhados por mim, sendo que 2 já descrevi e o
terceiro é filho de um colega médico aqui em Belo Horizonte: uma criança
epiléptica grave com alto risco de morte por causa da frequência das crises
convulsivas e, no entanto, desde que começou a usar o óleo teve uma evolução
boa e hoje já não usa outros convulsivantes. No terceiro ano do uso do óleo ele
desenvolveu visivelmente os seus aspectos gerais, lembrando que ele é uma
criança com limitações importantes, pois sofreu crises convulsivas
generalizadas com grande frequência durante a vida, então tem lesões neurológicas
permanentes, e mesmo assim, dentro de suas limitações, obteve grandes melhoras.
Os outros 15 pacientes do grupo têm características comuns do TEA, sendo um
conjunto de crianças epilépticas, outro de autistas de alta performance, outros
com crises de auto-agressividade e hiperatividade, dentre outros. Acredito ser
um leque bastante importante e com esses 18 pacientes tive uma
representatividade significativa no que diz respeito à pesquisa do Canabidiol. Esta
é uma amostra que pode não ser considerada expressiva, de um modo geral, mas
indicativa, das condições gerais que se encontra nos diagnósticos das crianças
No início do tratamento tivemos
três desistências por causa do uso de medicamentos tradicionais que foram
retirados durante o tratamento, ex: rebote por retirada abrupta e outros
efeitos. Hoje tenho visto muitos pacientes neurológicos com síndromes epilépticas
graves que diante da falência com outros medicamentos têm iniciado o tratamento
com óleos de cannabis e o próximo passo foi reduzir a dosagem dos outros
medicamentos e aumentar o nível de óleos, o que diminuiu a frequência das
crises epiléticas, e a partir desta atitude, hoje, estamos conseguindo fazer
uma introdução mais segura dos óleos que é concomitante à retirada dos
medicamentos.
O desenvolvimento da criança no TEA
que está em tratamento com o canabidiol é visto no estudo com grandes melhoras
na área da comunicação, no controle dos distúrbios do sono, diminuição de
crises epilépticas, recognição social, dentre outras áreas de dificuldade no
processo de desenvolvimento.
Eu percebo que devido ao pouco
tempo das pesquisas sobre os efeitos do canabidiol, não temos relatos sobre o
seu uso prologado.Mas espero, para crianças epilépticas refratárias, que
continuem o tratamento até que haja um avanço no conhecimento que seja superior
a esta terapêutica, o mesmo eu penso para crianças com distúrbio do sono grave,
bem como com crises de auto agressividade e em todos os extremos do autismo.
Nesses casos eu não consigo visualizar questões de dependência do uso contínuo. Já que as pesquisas são muito novas não temos certeza dos efeitos de
dependência. Já no que diz respeito à interrupção do óleo, tive um paciente que
não era agressivo e que teve grande melhora no desempenho cognitivo e
funcional, mas interrompeu o tratamento devido à seletividade alimentar que
estava causando emagrecimento, e tendo interrompido não teve regresso nos
ganhos (este é o único caso em que observamos este resultado), diferentemente
de quando aconteceu interrupção em casos de crianças com relatos de
agressividade em que após esta interrupção as crises voltaram.
Me parece razoável que não haja
dependência no uso do Óleo de CBD. As dificuldades são com as interrupções
ocasionais ou não. Quando se fala de dependência as pessoas estão falando em
cannabis em geral ou THC. E tenho experiência com pacientes utilizando óleo
rico em THC ou cannabis integral e não vejo dependência importante. No grupo de
18 crianças que posteriormente foi reduzida a 15, vejo dificuldades na
interrupção, pois as crises voltam, diferentemente das drogas tradicionais que
causam dependência e efeito rebote. O processo de tratamentos tradicionais é
muito limitado diante das dificuldades das crianças e eu tenho a segurança que
do ponto de vista orgânico não existe associação entre o uso de canabinóides
crônico e qualquer problema de saúde, diferentemente dos tratamentos
tradicionais como o uso da Risperidona, associado à obesidade, parkinsonismo e hipercolesterolemia.
Acredito que os tratamentos alternativos podem diminuir ou eliminar todos os
antipsicóticos e anticonvulsivantes e conseguir bons resultados, portanto é uma
grande vantagem já que este é um fitoterápico seguramente comprovado.
Está havendo uma expansão do uso de
óleos artesanais no país, pois muitos cultivadores estão plantando e mudando
sua forma de cultivo - e podem e devem fazer isso - pois há demanda para fazer
o óleo com igual qualidade ao dos Estados Unidos e mais barato. Nós temos um
relato histórico de uso de Cannabis - que tem teores de THC maiores – em que
talvez haja surpresas negativas (e eu espero que não), pois os efeitos dos
canabinoides pelo menos até onde eu posso dizer relativamente são inócuos
comparando-se aos outros remédios tradicionais. Não queremos desfavorecer o
THC, muito pelo contrário, pois tenho pacientes com evoluções surpreendentes
com o uso de óleos artesanais com grande índice de THC e que tiveram controle
excelente de crises. Os óleos artesanais têm problemas no que diz respeito à continuidade
por causa da diversidade e da qualidade das plantas, o que pode influenciar no tratamento.
Na minha visão não há restrições
importantes para crianças epilépticas, autistas ou autistas epilépticos. Se
tratando de epilepsia refratária a necessidade é que comece o tratamento o mais
cedo possível, pois dos tratamentos existentes é o menos agressivo, então
seguramente é uma opção de tratamento com início precoce. Nos casos de autismo
sem epilepsia, se o responsável está considerando o uso de antipsicóticos eu
sugiro que inicie com o óleo, pois ele atua sobre o conjunto mais amplo dos
sinais e sintomas, diferentemente das drogas tradicionais. Uma possível
restrição é o uso de uma ou mais medicações psiquiátricas associadas ao óleo
rico em CBD ou em THC. Pode ser utilizado com entrada mais suave do canabidiol
e retirada lenta e programada dos antipsicóticos e até anticonvulsivantes,
apesar de último ter boa associabilidade ao tratamento com canabidiol.
É importante ressaltar que não
estamos falando em cura, mas em melhorar o desenvolvimento global da criança
autista, trabalhando no controle dos aspectos mais graves e a alteração da
curva do desenvolvimento para cima, abrindo portas de oportunidade para
desenvolvimento futuro.