Menos invisível
Nova lei busca tirar do limbo jurídico e social mais de 2 milhões de
brasileiros afetados pelo autismo, transtorno pouco conhecido e mal
compreendido no país
IARA BIDERMAN
DE SÃO PAULO
Uma lei instituindo a política nacional para proteção aos direitos da
pessoa com transtorno do espectro autista acabou de ser promulgada.
Mas a data, 27/12, espremida no meio do feriadão entre Natal e Ano-Novo,
passou despercebida, assim como o problema, que atinge estimados 2 milhões de
brasileiros -uma população três vezes maior do que a portadora de síndrome de
Down.
"Os autistas no Brasil são invisíveis. A população não sabe o que
é, a maioria dos profissionais não sabe do que se trata", diz o psiquiatra
Estevão Vadasz, coordenador do programa de transtornos do espectro autista do
Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo.
É quase um quebra-cabeça compreender e reconhecer o autismo, que pode se
apresentar tanto numa pessoa com alguma habilidade extraordinária e boa
cognição quanto em alguém com séria deficiência intelectual e que não consegue
se comunicar verbalmente.
Por isso, hoje, é chamado de espectro autista, um guarda-chuva que
abriga os diversos graus de severidade do distúrbio.
Os diferentes tipos têm três características em comum: comprometimento
na área de comunicação e linguagem; transtornos de socialização; interesses
restritos e comportamentos repetitivos.
São alterações que podem ser chamadas de comportamentais, mas a teoria
mais aceita atualmente é a de que as causas são genéticas.
"Existem mais de mil genes possivelmente comprometidos que podem
levar ao autismo. Uns poucos são herdados, mas, na maior parte, são mutações
espontâneas e imprevisíveis, ocorrem por acidente ", afirma Vadasz.
Os neurônios dos autistas são mais curtos e com menos ramificações, o
que dificulta a condução, a transmissão e o processamento de informações. As
alterações vão se manifestar até por volta de um ano e meio de vida.
INVISIBILIDADE
Isso aumenta a invisibilidade dessas pessoas. "Não dá para
reconhecer pela aparência, é igual a de um bebê típico. E há casos em que o
desenvolvimento no primeiro ano é normal e, depois, a criança deixa de falar e
interagir. Imagine a angústia dos pais", diz Joana Portolese,
neuropsicóloga e coordenadora da ONG Autismo e Realidade, de São Paulo.
Os casos em que o bebê começa a se desenvolver normalmente e depois
volta para trás, chamados de autismo regressivo, correspondem a 10% dos
autistas. Os outros 90% manifestam sintomas a partir do oitavo ou nono mês de
vida, mas, na maioria das vezes, os sinais não são compreendidos pelos pais.
Embora não exista cura para o autismo, essas pessoas terão um
prognóstico melhor se receberem tratamento -preferencialmente, o mais cedo
possível.
As terapias incluem técnicas para desenvolver a comunicação por meio de
cartões com figuras, criação de rotinas rígidas e sensibilização e orientação
das pessoas que convivem com o autista.
"É lugar-comum dizer que o autista não faz contato, mas não é bem
assim. Eles entendem o que se passa ao redor. A questão é como as informações
são colocadas por nós para eles", diz Portolese.
'Escola especial não é o ideal, mas
às vezes é necessária', diz advogada
DE SÃO PAULO
Fernanda Raquel Santana, 19, gosta de conversar sobre videogames, bandas
de rock pesado e aviação comercial.
Rafael Camargo Ferraz Oliveira, 10, também é vidrado em aviões e adora
mostrar sua coleção, mas conversar sobre ela está fora de questão.
A jovem e o menino estão nos dois extremos do espectro autista. Fernanda
é asperger, um tipo de autismo caracterizado pela preservação das habilidades
cognitivas e maior capacidade verbal, enquanto Rafael é o chamado autista
"clássico", com comprometimento mais grave.
"A maior dificuldade dele é com a linguagem", conta a mãe, a
advogada Alessandra Camargo Ferraz, 42. Mas o tratamento intensivo -33 horas
semanais de psicoterapia, fonoaudiólogo e aulas especiais- ajuda Rafael a se
comunicar, cumprir rotinas, ir à escola (ele foi alfabetizado). E, sim, ele faz
contato.
"Dizem que o autista vive num mundo à parte. Não: o problema é que
ele vive no nosso mundo, mas precisa aprender como", diz a mãe.
O aprendizado implica acesso a tratamento e escola para essas pessoas,
recém-saídas de um limbo jurídico ao terem seus direitos equiparados aos de
brasileiros com deficiências -antes, legalmente, autistas não eram considerados
deficientes.
"A nova lei cria diretrizes para um plano nacional de proteção.
Vamos ver como vai ser na prática. É preciso tirar essa população do limbo
social: muitos ficam presos em casa e até as mães são excluídas socialmente,
porque têm que cuidar dos filhos", diz a advogada Renata Tibyriça.
A mãe de Fernanda, Regiane Nascimento, 52, largou trabalho e faculdade
para ajudar a filha, que passou por diversas escolas, apesar de não ter
deficiência cognitiva.
NAMORO E BULLYING
Além da alta funcionalidade, Fernanda tem uma habilidade acima da média
para o desenho. Dragões, figuras inspiradas no antigo Egito e personagens de
animações são seus temas prediletos.
Ela já ilustrou um livro didático e sonha em fazer seu desenho animado.
Já tem o roteiro pronto: a história, passada na cidade imaginária de
Monstrópolis, fala de namoro e de bullying na escola.
Na Defensoria Pública do Estado de São Paulo, onde Tibyriça trabalha,
são atendidos cerca de 30 casos por mês relacionados a demandas de familiares
de autistas: escola, tratamentos, transporte especial, além de denúncias de
discriminação e maus-tratos em instituições.
"A inclusão escolar não tem funcionado como deveria. Temos que
abrir caminho para a qualificação dos profissionais e das instituições e
entender que nem todo autista pode ser colocado em sala regular. Escola
especial não é o ideal, mas é o real para alguns casos", diz Tibyriça.
Em São Paulo, uma sentença de ação civil pública obriga o Estado a ter
centros especiais para autistas e, na ausência destes, custear tratamento
particular.
A inclusão do autista gera um conflito muito rico, segundo a psicanalista
Fernanda De Franceschi, que defendeu uma tese sobre o tema.
"Apesar de o autista quase não se expressar, sua presença denuncia
o que está debaixo do tapete, porque perturba a ordem preestabelecida e mostra
que a escola precisa se rever", diz Franceschi.
A lei que determina a inclusão é um ganho por forçar as escolas a se
capacitarem, mas a obrigatoriedade é só para a rede pública.
"A maioria das escolas privadas nega matrícula, principalmente as
mais bem avaliadas. Mas, como a escola pública está fazendo isso, a tendência é
esse cenário mudar. Os pais estão se conscientizando e pega mal para uma escola
'AA' ser denunciada por negar um aluno autista", diz a psicanalista.
NO CINEMA
"Rain Man" (Barry
Levinson, 1988)Dustin Hoffman vive um autista que conhece o irmão (Tom Cruise) após a morte do pai. Juntos, fazem uma viagem que os aproxima
"Gilbert Grape - Aprendiz de Sonhador" (Lasse Hallström, 1993)
Gilbert Grape (Johnny Depp) toma conta de seu irmão autista Arnie (Leonardo DiCaprio) e da mãe extremamente obesa
"Experimentando a Vida" (John Duigan, 1999)
Molly (Elisabeth Shue) é uma autista que se submete a uma cirurgia que supostamente a recuperaria. Sem sucesso, precisa aceitar sua condição
"Loucos de Amor" (Petter Næss, 2005)
Donald (Josh Hartnett) e Isabelle (Radha Mitchell) sofrem de síndrome de Asperger e tentam enfrentar o problema para ficarem juntos
"O Nome Dela é Sabine" (Sandrine Bonnaire, 2007)
Com imagens gravadas ao longo de 25 anos, a diretora conta a trajetória da irmã autista, Sabine, que viveu internada em uma instituição psiquiátrica
"Temple Grandin" (Mick Jackson, 2010)
Conta a vida de Temple Grandin (Claire Danes), autista criadora de métodos considerados revolucionários para tratamento de gado em matadouros